O paraíso não é aqui

Trabalho para o serviço exterior brasileiro. Isso não é segredo. Sou motivo de orgulho na minha cidade. Eu sou o cara que trabalha "na embaixada". Lá eu sou o Cônsul, o vice-cônsul, o diplomata e o que mais vier na cabeça do querido povo da pequena Pirapozinho. Sim, Brasil afora a confusão a respeito do que fazemos aqui impera. O que é lugar-comum é achar que somos o máximo, vivemos no bem-bom, somos "a nata", a corte...
A realidade é bem diferente, acreditem. Em 1998 pedi para ir para a Arábia Saudita, numa embaixada que tinha problemas de pessoal e fui tratado como uma "má aquisição para o posto"(sic). Não levemos em consideração que tive consertar, desculpem, cagadas feitas por "colegas" que saíram de lá elogiadíssimos, sem sequer um computador para chamar de meu. Dividia o computador do setor consular e fiquei várias (inúmeras) noites até para lá de meia-noite (e voltava para casa a pé) na Embaixada para imprimir relatórios que estavam já havia muito atrasados. Ainda assim, fui tachado de preguiçoso, incompetente e outras coisas mais. Minha saúde, naqueles seis primeiros meses, foi pro pau e tenho sequelas até hoje.
Quando parecia que nada poderia ficar pior, fui removido para Roterdã. Uau, Holanda, arrasou, hein? Sim....arrasei. O posto era uma verdadeira desgraça, mal instalado, um lugar onde ninguém se entendia, onde o Cônsul-geral se escondia na sua sala (quando aparecia para o trabalho) e onde coleguismo era uma noção há muito esquecida. Passei o diabo ali. Houve bons momentos, mas passei o diabo naquele lugar. E minha saúde indo pro pau.
Nesse espaço de quase dez anos fui inúmeras vezes de férias para minha cidade. Tive que contar um sem-número de vezes como era a vida "nas Arábias" e na Holanda. Para aquelas pessoas queridas eu era um herói. O cara que saiu dali para ser "cônsul"...O bacanão.
O que ninguém sabe e muito pouco se importa em saber é o calvário a que muitos de nós estamos sujeitos quando vamos trabalhar no exterior. Na cabeça do povaréu, somos uns privilegiados que temos tudo de graça e ainda reclamamos. Há benefícios? Sim, há, viajamos mundo afora, 75% dos nossos proventos lá fora não são tributáveis, em alguns postos há reembolso de 100% no valor pago por aluguel, etc. Cabe ressaltar que esses benefícios não são mordomias, afinal, estamos lá fora a serviço do Governo Brasileiro, e não a passeio. Mas, muitas vezes, o excesso de trabalho, de responsabilidades, de cobrança, de falta de apoio, a distância da família e dos amigos e um sem  número de outras razões, tornam nossa estadia lá fora um inferno inimaginável.
Há pessoas que lidam com esses problemas mais facilmente. Há aqueles que aguentam por algum tempo. Há aqueles, pobres deles, que querem voltar no dia seguinte.
A ideia de que diplomatas são lordes não poderia ser mais falsa. Há aqueles que são pessoas absolutamente fantásticas - e tenho tido sorte de trabalhar com alguns desses - mas há aqueles que ainda vivem nos tempos do Barão e que acham que quem não é diplomata só pode ser empregado, escravo, subalterno, com quem podem gritar, esbravejar, maltratar...
Amigos, quando se chega para trabalhar numa embaixada ou consulado e dá de cara com um clima pesado, no qual funcionários locais hostilizam você, a chefia hostiliza você e seus próprios colegas hostilizam você, a vontade que dá é de voltar no primeiro avião. O sentimento de desamparo é sufocante.
Eu já tinha decidido que não tocaria mais nesses assuntos, mas tenho uma grande amiga passando por isso tudo. É muito difícil prever como as pessoas vão lidar com essa situação. Há 18 anos eu dizia que tinha passado no concurso e pessoas faziam umas caras de "uau, Itamaraty, hein?!"  e no entanto eu ganhava menos que um motorista do Senado (e ainda ganho).
É tudo desgraça? Não, mas nem tudo são flores. Não vivemos nababescamente entre reis e lordes. Vivemos, sim, entre crápulas e corruptos - que me perdoem as exceções, vocês sabem quem são -  entre gente que não merece o prato de arroz e feijão que come. Ou o caviar, vá lá.
Glamour? Não, eu troco o glamour por algumas centenas de reais no contra-cheque.
Por tudo isso, tomei a decisão - não-hermética, cabe ressaltar - de não mais pedir remoção para o exterior. Quando digo não-hermética quero dizer que me reservo o direito de mudar de ideia. Ninguém sabe o dia de amanhã e posso acabar querendo ou tendo que ir pro exterior. Não é regra, mas viver fora do país cobra um custo alto em nossas vidas. Ganhamos em experiência, mas perdemos a vivência com os amigos, com a família. É como se colocássemos nossas vidas em "pause" por cinco, dez, doze anos. Por mais que se consiga ter um lugar que se considere lar, lar é onde está o coração, dizem. E Riade ou Roterdã nunca foram meus lares.

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