Cartas

Estou lendo o livro "Ghost Rider - Estrada para a Cura" do Neil Peart, baterista do grupo canadense Rush. No livro ele conta tudo o que ele vivenciou durante o processo de reconstrução pessoal ou, como ele mesmo colocou "de juntar os cacos de minha vida despedaçada", após a perda de sua filha num acidente e de sua esposa, mais tarde, para um câncer. Peart conta que o melhor que podia fazer para não ser esmagado pelas dolorosas lembranças era ficar sempre em movimento. Assim, decidiu pegar sua moto e cair na estrada sem destino e sem muito planejamento.
Nessas viagens ele se dedicou ainda mais à leitura - o livro é um excelente guia nesse sentido - à observação de pássaros, hobby que desenvolvera durante a estadia em Barbados, pouco antes do falecimento de Jackie, sua esposa e à observação da flora pelos lugares por onde passou. Isso tudo aconteceu entre 1997 e 1999, principalmente.
Outra "ocupação" a que ele se dedicou foi escrever cartas e cartões postais para amigos e familiares, sobretudo àqueles que estiveram mais presentes durante o que ele chama de "tempos de escuridão". E longos trechos do livro são transcrições dessas cartas, nas quais ele alterna períodos de bom humor e esperança com períodos mais tomados pela depressão e incerteza. Essa dedicação ao ato de escrever me trouxe lembranças.
A velocidade da informação hoje é algo ao mesmo tempo fabuloso e cruel. Em poucos cliques sabemos o que nossos amigos estão fazendo do outro lado do mundo. Por outro lado, a informação está cada vez mais diluída. Ninguém mais se preocupa em anotar o endereço do outro, basta entrar numa rede social e procurar o amigo. Em poucos minutos uma mensagem e a resposta. E lá se foi o encanto. Nem mesmo e-mail as pessoas tem trocado, pois isso significa escrever um pouco mais, debruçar-se mais sobre o texto, elaborar.
Desde minha adolescência eu gostava de receber coisas pelo correio. No começo eram cartas, de meus correspondentes espalhados pelo Brasil afora. Já tive até correspondentes no exterior. Era muito gostoso abrir a caixa postal e encontrar uma carta para mim lá. Corria para casa e abria o envelope com capricho. Lia o conteúdo mais de uma vez e já me sentava para tratar da resposta. Eu era ligeiro nisso, nunca deixava para depois. Aliás, tem pessoas com quem comecei uma amizade assim e com quem mantenho contato até hoje (alô, Mari Goterra!). Eu adoro receber coisas pelos correios. Fico ansioso quando compro algo e não sossego até receber o pacote em casa. Mas cartas... Essas já caíram em desuso.
Durante nossas andanças no exterior eu sempre procurei mandar postais para familiares e amigos. Acho muito legal essa atitude. Mas caiu em desuso, pois é mais fácil tirar uma foto e compartilhar pelo telefone. Mais fácil e com menos charme, com menos encanto. E não dá para pregar na geladeira também.
E aí, "garrei" a pensar: será que eu consigo convencer pessoas a trocar correspondência comigo? Sem prejuízo, naturalmente, dos contatos mais imediatos pelas redes sociais. Mas cartas, são mais pessoais. Você, quando escreve uma carta, pensa bem antes de escrever, edita, passa a limpo. Você se preocupa mais com a impressão que você quer passar com sua missiva. A carta vira instrumento para trocar ideias, além de apenas dizer como você está. Assuntos podem se arrastar por meses e até anos, através dela. E ainda tem a maravilhosa sensação de recebê-la pelo carteiro ou em sua caixa postal. Tem aquela antecipação toda, tipo "o que será que ele (a) conta?".
Vai me dizer que você nunca trocou cartas com aquele romance de verão?
Grande parte da minha correspondência, no entanto, se perdeu. Minha adorada esposa ainda me critica por eu não ter guardado a correspondência por nós trocada. Houve atenuantes. Toda a correspondência que mantive depois que saí da casa de meus pais, acabou se perdendo nas mudanças. O que sobrou estava na casa deles. Bem, ela guardou bastante coisa.
O ritual da escrita era quase sagrado para mim. Começava com a ida à papelaria para comprar o bloco de cartas. Tinha que ser de papel de seda, fininho. As canetas eram escolhidas com cuidado.  Cada parágrafo era pensado, bem pensado, antes de ser colocado no papel, pois tinha que caprichar na letra e nas ideias. Se borrasse, passava tudo a limpo.
Lembro-me de uma troca curta de cartas com meu saudoso amigo Jean. Ele não era muito afeito à escrita. Depois de uma ou duas, recebo uma carta dele escrita em papel higiênico. Piadista, hein? A resposta foi em pequenas folhas tamanho A5, mas misturadas. Cada folha era numerada e, ao final de cada página, um número de referência para a próxima página. Deve ter dado trabalho para ler. Já escrevi cartas em espiral também. Dá tanto trabalho para elaborar quanto para ler.
Ainda hoje eu adoro escrever. À mão. Adoro e sinto falta. Parte desse gosto pela escrita foi satisfeito com os blogs. Mas ainda sinto falta de escrever e receber cartas. Por isso decidi que vou tentar por essa ideia em prática. Quer fazer parte dessa rede? Mora em cidade distinta da minha? Põe uma mensagem aí, nos comentários.


Comentários

Nem tanto. Marromeno. Mas era preguiça minha de escrever, mesmo com o coração fervilhando de sentimentos e o cérebro, de ideias. "Domine, non sum dignus", etc.
Mari Goterra disse…
Lindo e muito verdadeiro esse seu post. Saudosos papéis de seda que arrancavam sorissos, relatos das experiências adquiridas em suas andanças,todos escritos com uma letra impecável, com muita sinceridade e emoção. Tinham postais, fitas K7's que guardo até hoje, assim como guardo nossa amizade em meu coração.Que bom que não nos perdemos na friagem humana, e cultivamos ainda a nossa amizade.
Nunca mais escrevi cartas ou recebi, mas confesso que seria divertido ativar este hábito.
Grande abraço meu amigo!

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